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prisma

Falo de mim, a dor está passando. Já posso descansar a mão sobre o peito e, no calor, derreter as duas pedras do gelo – este peito quente, o sorriso pálido, aquela máscara que se esfacela. É imperativo que se quebre porque me percebo no salão de baile onde já não há música, e estamos asfixiados. A orquestra se retirou sem que eu percebesse, e o que vejo são homens e mulheres debruçados sobre mesas, a baba escorrendo pelo canto da boca, inchaço nos olhos e, no pescoço, colares de serpentinas já amorfos, apenas tiras coloridas de papel barato.

Lá fora, entretanto, amanhece um sol amarelo se insinuando pelas frestas da janela e, tingindo paredes, peles e assoalhos, faz erguer do chão e flutuar entre nós um fulgurante prisma de cristal.

Dentro de exatamente um mês será lançado meu novo livro: O Beijinho e Outros Crimes Delicados. Dia 31 de agosto, à tarde, na mesma Martins Fontes da avenida Paulista onde, um ano e meio atrás, tomamos aquele banho de rio.

Mera meia soquete

Cinta-liga, pochete

Mastigar o chiclete

A velhinha coquete

A careca, o topete

O coxinha, o croquete

A rainha, o valete

o pé com joanete

A madame, o pivete

O beijinho, o bofete

 

Se cair na internet

Vira tudo manchete

beleza

Olhava encartes de LPs antigos, e brinquedos. Semana passada, umas cambraias guardadas na arca de couro e  xícaras de beiço fino. A camisola bordada a mão pela avó, que a irmã vestiu no batizado, uma fotografia da árvore de natal com bolas, sinos, aladins e lâmpadas translúcidas, naquele material que, caído, estilhaçava no chão.

Não há dúvida: viver ficou mais concreto, mas a beleza perdeu filigranas.

o fio

As Parcas são três deusas chamadas de Moiras, cujos nomes são Clotó, a que fia, Láquesis, a que determina o comprimento do fio, e Átropos, a que corta o fio da vida.

A vida é meramente uma precipitação (um calefrio, hipertermia) da eternidade. Relâmpago riscado a giz por mão assustadoramente veloz.

janela

84 anos, primeira consulta comigo. Articulada e atenta. Lá pelas tantas percebi que fazia uso de uma medicação antipsicótica.

– Faz tempo que a senhora usa esse remédio?
– Uns seis meses.
– E por que, exatamente?
– Meu juízo fugiu e me deixou maluquinha dentro de casa. O remédio foi atrás, trouxe ele de volta, mas de vez em quando ele ainda escapa pela janela.
– O que a senhora acha de fechar a janela?
– Dá muito certo não, doutor, porque eu não aguento ficar o tempo todo com o juízo dentro da cabeça.

Nem eu.

Incrível a utilização que as pessoas fazem do tempo. Em menos de 4 meses, Marco Feliciano, à frente da Comissão dos Direitos Humanos, alimentou ignorâncias e fomentou preconceitos numa performance que, não fosse perniciosa, seria basicamente surrealista e patética. Feliciano tem, para o cargo que ocupa a mesma qualificação que eu apresento para pilotar o Boeing cargueiro 747-8F que pousou no dia 28 de maio passado em Viracopos, tornando-se o primeiro avião cargueiro deste porte a aterrissar naquele aeroporto.

Os procedimentos de Feliciano neste curto espaço de tempo depõem contra qualquer senso ético ou humanitário e representam uma bomba MOAB dirigida aos princípios mais elementares de cidadania e contemporaneidade, eita Brasil!

O pastor tem todo o direito de permanecer no púlpito de sua igreja, trocando aleluias com seus pares, entretanto não é admissível que o presidente da Comissão dos Direitos Humanos transforme sua plenária num templo alienado e ensandecido, ressuscitando alguns dos espectros mais abjetos da maravilhosa e miserável trajetória humana. Nego-me a ecoar hosanas a este desvario.

A tia me pede calma lembrando que ‘os maus por si se destroem’. Eu, entretanto, que ainda não alcancei a sua sabedoria, espero que os recentes pronunciamentos de entidades, cujas vozes repercutem mais do que a minha, sejam suficientes para entregar o Boeing cargueiro a quem esteja qualificado para conduzi-lo. Lembrando que – valha-nos Deus – a primeira qualificação para o cargo é exatamente respeitar os direitos humanos que seguem a bordo.

Do contrário – e felizmente – nós já aprendemos o que fazer. Ou será que ainda não?

sereia

Inquietação muita gente tem; transformar inquietação em ouro são outros foguetes. Você tem o canto da sereia, e esta é sua glória e miséria. Sem o canto não há festa; sucumbindo ao canto não há jogo. Sugiro que o faça vibrar, mas não se detenha para ouvir. Vá em frente, sempre em frente, até que se torne música suave e não o impeça de escutar sua própria palpitação; esta, sim, matriz das palavras fecundas.

manhã

Há pouco
abri os olhos
e me deslumbrei:
amanheci.

E tudo amanheceu junto comigo.

Às cinco da manhã do domingo já se pode antever o dia ensolarado e quente. A primavera explodiu o inverno, e ele não encontra dificuldade em se levantar da cama, apesar do conforto sob as cobertas. Lá fora os afazeres. Na cabeceira gibis reminiscentes do Fantasma, Bolinha e um Homem Aranha escalando as paredes metálicas do arranha-céu.

Levanta, e ainda de pijama, inicia os exercícios na penumbra do quarto. O corpo redondo responde mal às tentativas de alongar, portanto se esforça para manter a vertical. São exercícios breves, ele quer o dia lá fora.
Abre a janela de madeira no térreo do mosteiro e seus olhos ultrapassam as folhas carregadas de gotas transparentes, alcançando a calçada do lado de lá do jardim onde a cidade igualmente desperta.

Liga o rádio e entra no banheiro ao lado. Abre o chuveiro e enquanto espera a água aquecer olha-se no espelho, a cara amarfanhada e gorda, a barba desalinhada e rala, o sábado inteiro às voltas com oblações da paróquia, onde o encantamento?

Vem desde criança a atração pela santidade. Quando menino, palavras como mosteiro, genuflexório, turíbulo, espalhavam cinzas e aspergiam magia nas tardes obesas do interior. Então, cerzia sacos de estopa, vestia-os, amarrava a cintura com a corda da rede e saía à rua, assoprando papéis de seda, os pés descalços e a cabeça nas nuvens, lugar bom de ficar.

Lugar bom de ficar feito o colo do pai, onde, montando o cavalo, acompanhava seus dedos longos folheando o catecismo cheio de imagens, dividindo, ambos, o silêncio sagrado.

‘Santo?!’, zombou o primeiro a quem confiou o desejo de santidade. ‘Quanto maior a consciência do pecado, mais altas as pretensões em contrário’, completou o sacristão antigo, passando a caminho do confessionário, nos preparativos da Semana Santa. Ele não entendeu o comentário e apertou entre os dedos a pequena imagem do São Francisco, eterno inquilino do bolso qualquer fosse a calça, agora comprida.

A água demora a esquentar, o chão está frio, essa barriga não para de crescer, ele se coloca de perfil diante do espelho e desliza a mão pelo abdome como fazem as grávidas. Embaixo d´água abre as pernas para expor à água todas as junções, a assadura inevitável pelo entrechoque das coxas grossas e os pelos enrodilhados. Enxuga devagar coxas e virilha, agachando-se com dificuldade, formando com as pernas um losango flácido, são misérias de existir. Foi o dermatologista quem orientou na televisão manter secas as dobras da pele, criadouro de fungos e bactérias. Todos os gordos deveriam ser expurgados, as banhas incendiadas no fogo do inferno e um sonoro Angelus deveria abençoar o que é belo, longilíneo e são.

O novo sacristão é belo, longilíneo e são. E tem olhos de amêndoa por onde nadam peixes esguios em tons variados de azul – isso é Deus.

‘Uma fagulha do vosso amor pode abrasar a terra’, reflete, enquanto, nu pelo quarto, acompanha, do rádio, o ‘adagietto’ da quinta sinfonia de Mahler, e a lembrança de Morte em Veneza, o filme que não cansa de rever, o entusiasma. Ele exala dos poros alguma esperança antiga.

Veste o hábito sobre o corpo nu, gosta das sandálias gastas e da genitália livre. Penteia o cabelo molhado, cada dia mais ralo, tentando alinhar fios parcos. O resultado é patético, ele sabe, mas sabe também que o ridículo é inevitável quando se tem calvícies a disfarçar, e ele as têm pelo corpo todo. Tenta alinhar, igualmente, a sobrancelha grossa, onde os fios são membros divergentes de uma mesma Ordem.

Não desliga o som, de onde agora sai uma música suave e delicados acordes; necessário aprisionar esse deus de belezas. Sai, encostando com suavidade a porta de madeira.

Os corredores são largos como sonhava na cama dos oito anos, entretanto não é aroma de incenso o que respira, mas a fornada do pão doméstico na cozinha próxima, e não há um órgão plangente no meio do pátio vibrando a Ave Maria, apenas dois ou três passarinhos cantando à capela no jardim central.

Depois do café, onde tomou Nescau, prepara a igreja para a missa das sete. A mãe informou lá atrás que no convento das Capuchinhas as freiras oblatas é que se encarregavam da limpeza e do trabalho pesado, moças simples do interior. Ele é leitor de Santo Agostinho e Teresa D’Ávila, quando vai assumir a homilia de domingo? O Eclesiastes joga água na fervura: ‘Vaidade das vaidades, tudo são vaidades’. Aperta o crucifixo na cintura e prossegue.

Distribui a eucaristia, a igreja lotada apesar do horário, a disciplina vai salvar o mundo. O sacristão recém chegado sorri framboesa e seus dentes são puro cálcio. O outro tem unhas de marfim, é tão jovem – são deuses, são deuses.

Na saída, conversa guloseimas com os paroquianos. A menina de dona Rosário está praticamente uma moça, já tem peitinhos e suor no buço. O irmão aflorou os maneirismos anunciados na infância, um jogo de pernas, o pulso que não se firma e uma cabeça móvel demais sobre o pescoço.

O adro da igreja, os religiosos, o domingo e as crianças, tudo desliza e se movimenta devagar ocupando espaço numa moldura barroca.

Depois, a dispersão, e ele chega à calçada; tocaria na moldura, se estendesse o braço.

Sobe dois quarteirões banhados por um sol civilizado, sem suores. A banca de revista é mais vibrante que este sol de primavera, encharcada de cores e delícias. Recorda os santinhos de papel da infância, igualmente expressivos e cheios de cor. Sebastião amarrado no tronco, as chagas vermelhas, vermelho o pano atado à cintura e os lábios crispados, dourada a auréola, e ainda as flechas. A mulher hortifrúti na contracapa do jornal convida com a língua à degustação. Elas são tantas que daria para fazer uma salada sem repetir a fruta, onde foi parar a inocência?

‘Bom dia, seu Nestor! Recebeu a revista?’

‘Bom dia, padre! Vende mais do que pipoca, mas a sua está guardada lhe esperando’.

Seus olhos acendem e ele expressa finalmente um sorriso. Ela está ali, de volta, vestindo o mesmo vestido vermelho, agora motorista do táxi de madeira. Abençoada ideia de relançar a Luluzinha, ele balança o gibi feito flâmula.

Desce a rua com a concentração de quem carrega o Menino – tem nove anos e volta do armazém onde o Alemão vendia os gibis distribuídos pelos cestos de verduras e legumes; encontrá-los era como descobrir ovos muito brancos aninhados no milharal.

Avista o pai no portão do convento empunhando um guarda-chuva desnecessário, e esbarra. Aperta a revista na mão. A poucos passos, o sacristão recém-chegado o chama com o monossílabo da intimidade e ele se volta, ventania.

A revista escapa de sua mão e dá luz à outra revistinha menor que vai descendo pela calçada na direção do pai, escorregando, virando cambalhotas até esbarrar na mureta do meio-fio. Vibrantes cores, closes, pentelhos e genitálias arreganhadas.

Quando cavalgava no colo dele, o pai chamava essas revistinhas de catecismo.