O delegado faz uma pausa e olha para todos. Na sala, um silêncio sepulcral.
– Juro que não fui eu! – Pierre se precipita ao centro do círculo que se havia formado. Teme que sua antiga rusga com o falecido o incrimine.
– Claro que não, meu jovem. Vê-se que o senhor está mais para a Morte do Cisne do que para Assassinato por Encomenda.
Pierre agradece, dá três passinhos para trás e o delegado é enfático:
– Façam entrar o assassino!
São necessários três policiais para conter o homem que entra se contorcendo como fosse uma cobra em areia escaldante.
É Pé de Fogo, o motorista de Marco Antônio que, por sua vez, arregala os olhos.
– Não adiantou essa ridícula peruca loira com a franjinha à lá Roberto Carlos. Meus homens o reconheceram aí na porta, e não é de hoje que ele é procurado. Puxem sua ficha policial e vão se deparar com Os Lusíadas, do Camões.
Leonor está passada. Quantas vezes o viu tomando cafezinho na cozinha de sua residência, e seria capaz de Jurar que Aninha, a passadeira de saias e vestidos, estava de rabicho com ele. E antes que Bernardo abrisse a boca, tornou-se compreensível o mantra que o brutamontes vinha repetindo: ‘soldadinho-mandado-não-merece-castigo-soldadinho-mandado-não-merece-castigo-soldadinho-mandado…’
– E quem é o mandante do soldadinho? – o delegado, em momento lúdico, adere à brincadeira.
Pé de Fogo aponta para o homem de bigode ao lado de Leonor.
Ele mesmo: Marco Antônio. Muitos já esperavam por essa. Atrás de um grande homem sempre existe uma grande mulher; atrás de um pistoleiro mequetrefe sempre existe um grande homem.
– NÃO, por favor, eu explico! – Marcão insiste enquanto é algemado. – Fiz tudo isso por amor.
Sobe a voz de Zizi Possi em momento de grande emoção: ‘Per amore hai mai fatto niente solo. Per amoré hai sfidato Il vento e urlato mai?’ Close nos olhos de Leonor, depois no bigode de Marco Antônio. Pandora manifestando expectativa, Bernardo paralizado, Pierre arrancando outra cutícula, Mona Lisa, toda enfado, com cara de paisagem, ela detesta música italiana.
– Eu explico. Não sou o único aqui a contratar o serviço destes profissionais. Bernardo também contratou Laércio Mão de Chumbo para uma execução.
Todos: óhhh!!!!!!!
Bernardo abaixa a cabeça, constrangido. Leonor levanta seu queixo, Pandora o mantém ereto, Marcão continua:
– Em função de sérias tormentas existenciais, meu amigo Bernardo resolveu botar um ponto final em sua existência. Esteta como sempre foi, não conseguiria, ele mesmo, executar a tarefa. Me procurou e indiquei um dos meus homens de confiança, Laércio. Evidente que eu não sabia quem era a vítima, senão jamais teria permitido este destempero. Somos amigos há anos. Acontece que Bernardo desistiu da idéia ainda no nascedouro e desfez o combinado. Laércio me telefonou na Tailândia, onde eu procurava espairecer.
– Vamos ligeiro com isso, meu senhor. Trata-se do último capítulo e temos todos pressa – intervém o delegado.
– São poucos os que sabem do amor que dedico a uma criatura muito especial…
Recomeça Per Amore e ênfase nos olhos de Leonor que, lentamente, vão se dirigindo para o chão.
– Bernardo, há muito tempo não tiro sua mulher do pensamento.
Novamente todos:
– Óhhhhh!
Pierre arranca mais uma cutícula e Mona Lisa confere as horas pela enésima vez.
Bernardo vai se mover na direção do antigo amigo quando Leonor o contém.
– ‘Amor discreto de uma só pessoa’, fica tranquilo…
Pandora passa a mão na cabeça de Bernardo como quem procura constatar as palavras da amiga. Realmente: plaino como uma pista de pouso.
Marcão continua:
– Quando Bernardo desistiu, diante da frustração de Laércio o orientei a executar a tarefa, desta vez sob meu comando. Pensei que sem Bernardo seria mais fácil conquistar Leonor. Acontece que também me arrependi em seguida. Leonor levaria anos para se refazer do choque e já não estamos na idade de esperar a primavera. Além de que este homem justo serviu o exército comigo. Para não causar nova frustração a Laércio e à sua alma sensível e meticulosa, solicitei a Pé de Fogo que o poupasse desse mal estar.
Ainda de cabeça baixa, Leonor, com o rabo do olho perscruta o semblante do marido. Ele está intransponível. Marco Antônio ainda tem algo a dizer:
– Vejam, meus amigos, quantos acordes numa só canção: Por amor à Leonor, pensei em subtrair seu marido e velho amigo meu. Por amor ao meu amigo e respeito ao sofrimento da viúva, abortei a ideia. Por amor a Laércio, meu mais dileto homem de confiança, poupei-lhe de uma irreparável frustração, por amor a…
Pé de Fogo tenta se livrar dos soldados:
– E eu que não amei ninguém é que vou pagar o pato??!!
O delegado não se intimida:
– Sr Marco Antônio, ‘com banana e bolo é que se engana um tolo’. Acontece que desta vez o tolo é o senhor mesmo. Meninos, aos costumes!
E saíram com os presos escada abaixo sem permitir sequer que Marco dirigisse os olhos para sua amada pela derradeira vez.
Abraçaram-se todos, trocaram elogios, apalparam-se, folguedearam, emocionante confraternização. Há muito tempo do lado de fora, Mona Lisa os espera no limite da paciência. As mãos nos bolsos da bermuda jeans.
– Foi tudo tão lindo, chèrie! – Pierre parece encantado. Despede-se agora de Pandora, na calçada – estou te esperando em Paris. Jamais esquecerei aquela noite em meu quarto; sinto que uma onda mais forte se alevanta, compreende?
– Serei breve, mon amour, serei muito breve. Todas as possibilidades nos pertencem – Pandora o beija com doçura.
Há transeuntes que aplaudem e saem dançando, jogando para o alto os chapeus coloridos.
Ainda bem que seu acompanhante não conseguiu cancelar as passagens. Se sair agora ainda tomará o avião. Beijinhos para todos, Pierre abre a porta do taxi que o espera. Pandora olha pela janela, se abaixa e dá um sorriso maroto:
– Tcharles, meu querido, cuide bem desse pitéu.
O táxi sai a toda. Não há tempo a perder.
Quando erguem as taças de champanhe em volta da piscina, há uma bela lua no céu. A noite é de estrelas. Leonor está exultante porque conseguiu renovar o guarda-roupa dois números abaixo do que vinha usando. Bernardo comemora um novo tempo. Mona não comemora nada, e Pandora comemora tudo porque está feliz.
Bernardo compreendeu que ela não tinha condições de enfrentar a máfia italiana, e assim aceitou seus motivos. Acabou agradecendo ao próprio Dom Corleone por ter favorecido esse encontro naquela noite chuvosa.
Embarcam em uma semana. Vão a Paris rever Pedro Augusto, rever a Champs Elisée, rever a Sacre Coeur, rever o cacete a quatro. Pandora combinou baixinho com Bernardo tardes no Bois de Boulogne, árvores, jardins, a lagoa, o canto dos pássaros. Segredou com Leonor noites de barco pelo Sena. Um sorvetinho – apenas um – no Berthillon da Île Saint-Louis. “Mistura de mandarina e chocolate pra você; pêra e caramelo para mim”. Leonor salivou, excitada, já estava lá.
O champanhe borbulha nas taças. Sob a mesa dedos e pés que se trançam, vão, retornam, tornam a ir, se beliscam, se alisam, cumprimentos. Totalmente anti-alzheimer descobrir, de olhos fechados, de quem é este pezinho.
Torpedo no celular de Leonor. É um certo doutor que trocou Hollywood pela taba. Leonor joga o celular na piscina por cima do ombro; ele faz bolinhas na água azul. A câmera vai abrindo lentamente até aludir a borbulhas, estrelas, candelabros, castiçais, perfumes e saltos.
Uma semana depois, estão a bordo. Na Primeira Classe Bernardo, Leonor e Pandora continuam festejando. Bernardo, que começou esta narrativa tão murchinho, se encontra mais contente do que pinto na chuva. Leonor é um peixinho em mar aberto. Pandora está reluzente, cabelos soltos, descalça, a voz de licor, que fragrância delicada exala essa mulher! Petiscam, degustam, é pele, são sedas e línguas.
O avião cruza o Atlântico, agora é madrugada. Muitos dormem, é um quase silêncio, as turbinas a mil. Quando Pandora se levanta, a aeromoça vem a seu encontro: Pardon! Pandora a cumprimenta e segue em frente. Na poltrona atrás da sua, Marília, ex-esposa de outro Bernardo, dorme muito bem acompanhada; na boca, delicado sorriso. Pandora chega à Econômica e caminha com suavidade, não há turbulências, a nave desliza serena.
Na última fila ela está à vontade. Fez um aplique que lhe desce à cintura. Não usa a bermuda jeans e passou um discreto batom. As pernas cruzadas, finalmente borboleta. Pandora se aproxima, elas se constatam, sim, está aqui. Ao chegar à poltrona, Pandora descansa a mão em seu ombro e a observa em silêncio. Depois segue em direção ao toalete. Quando Mona Lisa levanta, acendem as luzes e anunciam o café da manhã.
O avião desperta devagar. As pessoas se olham, “onde estou?!” Bocejam, se espreguiçam, alongam as pernas, procuram sapatos, enxugam a baba no canto da boca.
Alguns abrem as janelinhas, o dia amanhece alaranjado. Paris vem logo acolá. Cheirinho de café e de suco artifical de laranja, jus d´orange.
Pandora faz o caminho de volta. Continua soberba. Alguns passos adiante pára no corredor e olha para trás. Mona sorri com os olhos. Pandora pisca um olho em total discrição. Retoma a caminhada ao encontro da primeira classe, que também já despertou.
O comandante vem pessoalmente convidá-la para ir até a cabine. Ela sorri. Ele é elegante e gentil. Lá dentro a espera um monumental café da manhã. Servem-se juntos. Depois, segurando sua mão, ele mostra os contornos lá no horizonte. Por trás dos raios de sol, ela é a primeira a ver Paris.
Aberta a Caixa de Pandora, doces pecados para todos os lados.
Alguém duvida que Paris será uma festa?!