– Silêncio!
Pedro bateu a chave na mesa do plenário.
Desfeito o burburinho, todos se voltaram para ele, sentado na cadeira principal.
– Atendendo suas solicitações de audiência estamos aqui. Vamos ser rápidos e objetivos porque, não preciso repetir, time is money.
– Money, money, that´s the problem! – Edwiges foi a primeira a se manifestar. – serei breve. Não estou conseguindo atender minha demanda, Pedro. A galera lá embaixo não para de se endividar, e a inadimplência está fora de controle.
– Como são perdulários esses frangotes! – alguém consignou.
– Até os americanos, que sempre me deram sossego, agora vivem atrás de mim. Ouvi dizer que pretendem me levar para a própria Saint Patrick na Quinta Avenida, veja você. Com a solicitação que me fazem os países emergentes, vou ter que dançar miudinho pra me manter em dia.
– Isso não é nada, Edwiges; no afã de ser atendido, o pessoal anda enfiando os pés pelas mãos. Imagina que agora não passo um único dia sem solicitação de casamento, eu que sempre estive na pasta da recreação – interveio João.
Antônio interrompeu, ligeiramente nervoso:
– Não se recuse, João, por favor. Andei terceirizando meu negócio porque está impossível atender a demanda. Historicamente sempre fui dos mais assediados, mas num mundo pós Betty Friedan, achei que me dariam um refresco.
– E não deram? – Pedro pareceu surpreso.
– Qual nada! As meninas se emanciparam, algumas chegaram a presidências de Repúblicas, porém não desgrudam de mim. E, pior, continuam utilizando aqueles métodos pré-históricos. Esta semana passei uns bons dias de cabeça pra baixo para atender a solicitação de uma senhorinha carola do interior do Amazonas. A fulana tem dois dentes na boca; os sisos. Tive que tirar leite de pedra.
– E por isso você quer correr com a sela?! cada um com o seu B.O., meu amigo – João foi enfático.
– Há séculos desenvolvi essa labirintite – Antônio insistiu.
Pedro ponderou, coçando a barba branca:
– Realmente, Antônio vai precisar montar um pequeno staff; ainda mais que a demanda masculina também existe. Fora o terceiro sexo que, já quase o primeiro, também têm lá seus projetinhos burgueses; que falta de imaginação!
– Não contem comigo, gritou Antônio de Pádua, minha pasta está sobrecarregada. Penso até em me juntar com Edwiges num Mata Fome qualquer; e ainda Judas Tadeu, que está habituado a lidar com essa gente. Convoquem Clara, que vive de sombra e água fresca. Olha aí esse pulôver que está usando, ela mesma teceu; veja lá se eu teria tempo para essas veleidades…
Clara levou a mão à cintura:
– Tá louco, Antônio de Pádua? você não tem acompanhado os jornais? com a mixórdia que eles andam fazendo naquele planeta, meu ministério tem sido dos mais procurados. O tempo está mais devastado que o outro Antônio, de pernas pro ar: alagamentos na Austrália, seca na Paraíba, tsunami na Indonésia, você caiu em cima da cabeça, irmão? até o Brasil andou tremelicando um dia desses.
– Mulher de pouca fé! – atalhou José com sua calma habitual; o trabalho enobrece a todos. E nós não somos funcionários, somos profissionais, percebem a diferença?
– Você diz isso porque a galera que não quer nada com o batente é grande o suficiente pra garantir seu sossego, isso é que é.
– E os sindicatos organizados, você se esqueceu? Pensa que todo socialista é ateu?
Pedro foi novamente conciliador:
– Não devemos nos dispersar, meninos; onde está Jorge?
– Novamente atrasado. Com a desculpa que vem a cavalo é sempre o último a chegar, o bonitão.
Rita de Cássia é a própria mansidão:
– Na verdade, todos gostariam mesmo era de estar no lugar de Pedro, que tem acesso direto à corte. Somos usados como meros instrumentos e moleques de recado, isso é que é.
Pedro não se impressionou; levantou discretamente a voz.
– Mas o que é isso, Rita de Cássia? vai sugerir insurreição a essa altura da homilia?
– Longe de mim, Pedro, mas é preciso reivindicar nossos direitos. Eu, particularmente, não tiro férias há décadas. Não falo em remuneração, falo mesmo em repouso, pois se até ele descansou no sétimo dia. – arrancou uma cutícula com o dente.
– E eu, que faço jornada dupla?! – interrompeu Bárbara, bem mais arrojada. Além de minhas obrigações por aqui ainda tenho que participar dos eventos na Bahia, no Rio de Janeiro e em toda a África, encarando fumacê e aquela biritada toda. E os batuques?! 4 de dezembro e 2 de fevereiro eu fico tonta, emendando uma coisa na outra; para não falar no Reveillon e aqueles barquinhos de isopor; vocês pensam que aprendi a nadar?!
– Se for por isso… – emendou Jorge, que chegou a caráter, todo guerreiro, lustrando a bota, bigode aparado, o cavalo branco amarrado no toco. Parou de falar, correu os olhos pela sala, cumprimentou a todos com um sorriso viril e continuou, tirando o chapéu:
– Se for por isso, tenho muito o que reivindicar. Frequento os mesmos terreiros que Bárbara e sou solicitado para descascar pepinos que enrubesceriam até ele lá – e elevou o indicador. Essa junção de preto com branco é que causou a confusão. Em vez de deixar cada um no seu quadrado, inventaram o tal sincretismo sem nenhuma legislação trabalhista. Assim, a gente cai no duplo vínculo sem qualquer apoio legislativo.
– Fora a confusão que faz em nossa cabeça – Bárbara atalhou. – dia destes acordei com o vestido azul de Iemanjá exatamente quando deveria estar com o meu branquinho para receber as homenagens na paróquia de Santo Antônio de Balsas, no sertão do Maranhão, que pouco tem a ver com a história africana.
Jorge falou pausadamente, ainda de pé:
– Eu, que fui alfabetizado no idioma de Dante, tive que aprender numa lapada só o nagô e o yorubá pra não boiar na festa. No começo todo o mundo se divertia com os atabaques e eu ali com aquela cara de sinhá-mariquinha-cadê-o-frade. Até beber eu tive que aprender rapidinho. E fumar, então?! acha que eles conhecem um bom cubano maturado? não, meus amigos; é no fumo de rolo.
– Você, pelo menos, é sempre lembrado. Até Jorge Benjor fez uma musiquinha bastante razoável pra você…
Jorge pavaneou-se e cantarolou baixinho: Jorge sentou praça na cavalaria, e eu estou feliz porque também sou de sua companhia… Ele sabe que desperta grandes paixões; conhece, igualmente, a ingratidão popular a que Tomás de Aquino se refere.
– Só se lembram da gente quando têm alguma audiência a solicitar, já reparou? e quando fazem um arremedo de agradecimento é apenas para garantir a próxima solicitação. Lembra do quanto andaram incensando Expedito um tempo desses? distribuíram mais santinhos do coitado do que de candidato a vereador; e nem se deram ao trabalho de recorrer ao fotoshop. Não têm a mínima consideração…
– O pior é que praticamente não há renovação nesse plenário. A demanda só aumenta e o número de atendentes permanece praticamente o mesmo. E do jeito que as coisas andam lá por baixo não vejo muita perspectiva de mudança. – Rita está pessimista; sacou um leque.
– Não vejo a hora de Teresa chegar – Edwiges comentou com humildade. – habituada a correr a lacoxia em Calcutá, desenvolveu uma invejável experiência; sei que terá muito com o que contribuir.
– Coitada de Teresa, tão generosa; não sabe o que a espera.
– Vocês não imaginam o que passo com as beatas de Portugal – Vicente de Fora coçou a cabeça; e emendou:
– Os beatos são os que mais nos exigem. Estão sempre se arrependendo do que fizeram e do que irão fazer, sem que isso altere minimamente suas atitudes, vejam que interessante. E que línguas, senhor meu, que afiadas línguas! – fez o sinal da cruz.
Pedro interrompeu as lamurias.
– Muito bem, senhores, já percebi que se trata de uma rebelião. Sejamos claros porque não disponho de muito tempo por aqui: qual a proposta, vamos lá, qual a proposta?
– Cogitamos elaborar um documento para ser entregue em palácio, mostrando todas as nossas tarefas, apresentando os resultados auferidos até aqui e ainda uma projeção para o próximo século, a continuar as coisas como estão.
– Vocês estão fazendo ameaças? – Pedro passou novamente a mão pela barba longa.
– Esqueceu quem somos nós, Pedro? – Antônio comentou com doçura – que ameaça que nada, queremos apenas nos sindicalizar.
– Ainda falam em sindicato em pleno século XXI?!
– Por quê o susto? sindicatos laborais não envelhecem…
– Isso me cheira a ingratidão. Vocês foram escolhidos para usufruir da vida eterna, isentos de todos os impostos, longe do choro das crianças, ausentes dos almoços de domingo nas churrascarias, e ficam nesse chororô feito bezerros desmamados. Por acaso invejam a sorte dos seus clientes? vocês são a elite da humanidade; isso é pouco?
Silêncio.
Pedro continuou:
– Uns choram porque apanham, outros porque não lhes dão. – E voltando-se para ele, enrodilhado na túnica marrom:
– Comungas desse pensamento, Francisco?
– Os pets são o negócio que mais cresce em vários países, Pedro; jamais estive tão atarefado. Hoje tenho que atender não apenas aos irmãozinhos, mas também aos irmãos donos dos pet shoppings que, como a maioria dos irmãos empresários, atiram em todas as frentes.
Pedro fechou os olhos: até tu, Brutus?!
– Muito bem lembrado, Chico – interrompeu Bartolomeu; e dirigindo-se a Pedro – trouxeste a calculadora?
Pedro enfiou a mão no bolso da túnica.
– Cada um destes pedintes solicita em média cinco ministérios. O mesmo dono do pet shopping acorre a Francisco no tocante aos animais, a Onofre no que se refere a dinheiro, a Edwiges se por acaso se endividou, a Antônio para conciliar dilemas do coração…
– Às vezes mais de uma vez por empreita – atalhou Antônio – se tiver mais de uma mulher, situação nada incomum para aqueles lá. Mas continue, desculpe a interrupção.
– Pois bem. Quantos habitantes têm o planeta ao qual servimos? seis bilhões. Tire uns 15% que não nos molestam por diversas razões, e a que número chegamos?
– Pouco mais de cinco bilhões de assédios. Diários.
Pedro coçou a cabeça secular.
– Realmente assustador.
– Outra sugestão seria teres uma conversa franca com ele. De hom…, quer dizer, de san…, enfim, Pedro, sabes ao que me refiro.
– Continue…
– Das duas uma: ou ele revê a constituição e dá uma liberada, ou aumenta o contingente, porque quando foi acometido por esse furor legislativo se tornou impossível não incorrer em falta continuamente; e por outra: pode a galinha desconhecer a natureza de seus pintinhos?!
– Se liberar os prazeres do corpo já vai ajudar um bocado – Teresinha acorreu, esperançosa.
– Que será dos psicanalistas?
– Outra classe desempregada para eu contabilizar – Edwiges se levantou impaciente, batendo a saia para amenizar o calor.
– Se pelo menos relaxasse o artigo dos pecados por ‘pensamentos, palavras, atos ou omissões’, não é? Onde se encontra alguém quando não está pensando, falando, agindo, ou se omitindo, alguém saberia me dizer?!
Pedro interveio prontamente:
– Vocês falam como se estivéssemos no Rio de Janeiro deliberando a respeito da descriminalização das drogas. O que é certo é certo e o que errado é errado, ora essa! Arranhem este fundamento e despencaremos todos no fosso do achismo; um passo para a devassidão geral. E não sejam burros: instaurando-se a devassidão vocês perderão completamente a serventia; por acaso pouparam para a eternidade?
Novo silêncio. Ouvir-se-ia o voo de uma mosca.
Ivo, deslizando o dedo pelo rubi do seu anel, ponderou:
– Por outro lado, existe uma razoável demanda que se nega a recorrer ao que chamam de baixo clero, e tratam diretamente com a presidência. Têm outra cosmogonia e se proliferam à velocidade da luz. Ele estaria disposto a atender pessoalmente o nosso eleitorado? Trata-se da grande maioria e por enquanto está blindada, sob a nossa direção.
Francisco tossiu, Luzia assoou o nariz, Rita abanou o leque.
Novamente o silêncio.
Pedro retomou com voz grave:
– Muito bem; e quem vai escrever este documento?
– Teresa D´ávila, que entende do riscado – falaram três ao mesmo tempo.
– E por quê não Antônio Vieira, ainda mais erudito? – reivindicaram outros.
– Se Pessoa não tivesse pecado tanto… – alguém lamentou a ausência.
Formaram-se imediatamente duas facções: correligionários de Teresa contra defensores de Antônio Vieira. Dividiram a sala como nos tempos de escola, trabalho em equipe, formaram círculos.
Galvão, ainda em fase de estágio, segurou o queixo com a mão: – Até aqui, meu Pai?
– Vem pra cá, Galvão. – convidou o primeiro grupo.
– Por quê não aqui? – cogitou o segundo.
Cícero, que entrou de penetra com seu chapéu de couro, sorriu amarelo. Refez-se em seguida e perguntou alto.
– Tem alguém do Ceará por aí?
Ouvidos moucos. Pedro chegou até ele.
– Comporte-se como ouvinte, visse? Tudo leva a crer que brevemente estarás sentado em plenário mas, por enquanto, segura a peixeira. – deu-lhe dois tapinhas no ombro e tirou-lhe o chapéu.
A coisa ficou mais descontraída. Pedro abriu as janelas e o sol entrou. Com muita delicadeza, Teresa Dávila corrigiu os modos de Francisco que, tantos séculos dedicados à pobreza, havia esquecido sua primorosa criação em Assis, sequer conseguia usar os talheres. Antônio Vieira seduziu a audiência recitando de cor versos dos Lusíadas, deixando Jorge pouco à vontade porque Jorge não está acostumado a ser coadjuvante. Rita de Cássia tirou um cisco do olho de Edwiges e soprou, Cosme e Damião trocaram doces, pirulitos e guloseimas, e Galvão ouviu atentamente as orientações de João Batista à questão de um devoto que Tomás de Aquino lhe trouxera. ‘A coisa por aqui não é fácil’, falou consigo.
Pedro acompanhou com um sorriso aquele congraçamento. Felizmente estamos a salvo da pequeneza humana, refletiu. Solicitou um sanduíche porque há muito tinha fome. Estava certo que depois desta recreação os pensamentos inadequados entrariam em repouso pelo próximo milênio; é com diálogo e boas maneiras que tudo se resolve.
De repente tocou o celular. Pedro conferiu: é da corte. Atendeu prontamente.
– Pois não!
– Pedro, sobe agora. Preciso falar contigo.
– Apenas um momento; acaba de chegar o sanduíche que eu pedi, ainda tá quentinho.
– Eu disse AGORA; deixa de embromação. Embrulha e vem comer aqui!
Adoro toda essa ironia burilada…..a-d-o-r-o, e me divirto.
Beijão
Olha, Show de bola!!!!!!
Querido, dos deuses, DIVINO, hilariante!
E que cultura a respeito dos santos, hein?!
Aquela devoção da infância foi superbem aproveitada literariamente!
A parte do sincretismo está fantástica!!!
Palmas entusiasmadas!!!!!
Ia escrever um monte, mas……palmas entusiasmadas!!!!!!!
Bravos, delicioso!
e não é que é o que tinha de ser !
vamos publicar antes q ‘um aventureiro lance mão’???
MORAL DA HISTORIA: ‘QUEM PODE MANDA, QUEM TEM JUÍZO OBEDECE’.
SEMPRE ASSIM, NÃO É MÊS???
Mesmo eu que nao sou versado neste ‘minsterio’ compreendi as alusões aos ministros e me diverti a beça. Bem bolado.
as vezes o santana ve o filme ao contrario…so as vezes